Review: As Novas Cartas Portuguesas, Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa
Para abril escolhi três leituras impactantes, relacionadas com o mês da liberdade e escritas por 5 mulheres.
5? Sim, não me enganei, porque este primeiro livro que vos trago este mês foi escrito a três mãos, por Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa. As famosas 3 Marias.
Para quem não conhece este livro, fica aqui um contexto histórico, resumido mas espero que eficaz.
O livro As Novas Cartas Portuguesas (NCP) foi escrito em 1972 por estas três mulheres. Todas elas já tinham obras publicadas em nome próprio quando se conheceram, mas juntas decidiram criar uma obra diferente de tudo o que já tinha sido feito em Portugal.
Além de juntarem num só livro vários estilos literários, como a prosa, a rima, a carta e o teatro, também foram precursoras no tipo de linguagem utilizada, chegando mesmo a ser acusadas pelo regime de terem escrito conteúdos imorais e pornográficos. Claro que nos anos 70 a palavra vagina era uma palavra proibida, não fossem as mulheres perceber o que tinham no meio das pernas não é?
Este foi um livro que marcou a vários níveis a sociedade portuguesa da época pela ousadia das suas escritoras, crueza das suas palavras e por ter sido logo à sua nascença um livro proibido.
Natália Correia, uma grande escritora da época enredada em controvérsias por ser mulher e ter voz, assumiu desde logo a direção literária da obra e foi imediatamente precavida de que deveria omitir várias partes do livro para que este pudesse ser publicado. Mas Natália Correia (e escrevo os dois nomes dela por não me atrever a tratar esta talentosa mulher apenas por um nome) não se acanhou e seguiu em frente com a publicação da obra por completo.
Assim que viu a luz do dia, a primeira edição de NCP foi apreendida e destruída pela PIDE e as três Marias foram presas e presentes a um juíz acusadas de vários crimes, entre os quais aquele que era tantas vezes usado como desculpa à falta de liberdade de expressão, um atentado aos bons costumes deste povo português.
As três Marias foram detidas e interrogadas em conjunto e separadas. Foi lhes pedido individualmente que entregassem as suas parceiras revelando de quem teria sido a autoria das palavras mais ousadas, mas estas três escritoras aguentaram firmes e até hoje, ninguém sabe quem escreveu o quê. É um livro das três, escrito pelas três e assumido, para o bem e para o mal, pelas três.
O primeiro julgamento foi marcado para novembro de 1973 e acompanhado por vários meios da imprensa internacional, entre eles o The Times, Le Nouvel e o Observateur. O caso das três Marias também foi seguido por figuras que estavam a surgir no feminismo mundial, como Simone de Beauvoir, Marguerite Duras, Doris Lessing, Iris Murdoch ou Stephen Spender.
Enfim, porque esta contextualização já vai extensa, depois do julgamento as 3 Marias permaneceram presas para serem novamente presentes a tribunal em abril de 1974 e já todos sabemos o que aconteceu! Os militares de abril marcharam contra o regime ditatorial que mais anos durou na Europa Ocidental e os presos políticos, nos quais se inseriram as 3 Marias foram soltos. A segunda edição do livro não só viu a luz do dia como se tornou numa obra marcante da literatura feminista nacional e mundial e muitos denominam esta como uma obra essencial da primeira leva do movimento feminista.
Passando agora à review propriamente dita do livro. A personagem principal da obra é Mariana, uma freia, encarcerada no convento de Beja à força, onde vive grande parte da sua juventude e velhice, até ao dia da sua morte. De referir que as NCP foram inspiradas numa obra francesa do século XVII, chamada Lettres Portugaises.
Apesar de presa no convento, Mariana não deixou de viver uma paixão, insuflada de desejo carnal por um cavaleiro francês de seu nome Chamilly, que deu sentido ao corpo de Mariana e a fez sentir desejada. Entre a história destes dois pautada por encontros e abandonos, “pecados” e bênçãos, vão nos sendo apresentadas várias outras personagens, mulheres, mães, primas e irmãs. E é através destas personagens que vamos descobrindo sílaba a sílaba a realidade vivida em Portugal à época.
A forma como as mulheres eram tratadas, como um objeto do pai que é passado para o marido, um objeto que não sente e que não tem dizeres. O sofrimento das mães, das irmãs e das namoradas daqueles jovens que partiram para um guerra que não era deles e também os testemunhos daqueles que saíram do nosso país com 18 anos e uma arma na mão e que em muitos casos não voltaram.
Com esta carta sei apenas conseguir reacender raivas, orgulhos e sentidos de posse sobre mim. Bem me podeis executar, quem me defende? A lei? A que dá aos pais todos os direitos de mordaça, aos machos primazia e à mulher somente o infinitamente menos nada, com dádivas de tudo?
Acho que é justo dizer que todos os portugueses se identificam com a história de pelo menos uma das cartas que compõem esta obra. Talvez por terem alguém na família que passou por isso, ou se calhar por já terem ouvido tais relatos.
A verdade é que nesta obra somos todas Marianas, Mainas, Marias e Mónicas. Somos todas irmãs. Sabemos todas o que as personagens sentem, ou mesmo não sabendo conseguimos sentir uma empatia profunda pela sua situação. Esta obra é um relato nu da sociedade portuguesa, de um país marcado por uma ditadura, onde os direitos das mulheres eram parcos, quase inexistentes. Onde se vivia um dia de cada vez, à espera de melhor.
Em salas nos queriam às três, atentas, a bordarmos os dias com muitos silêncios de hábito, muito meigas falas e atitudes. Mas tanto faz aqui ou em Beja a clausura, que a ela nos negamos, nos vamos de manso ou de arremesso súbito rasgando as vestes e montando a vida como se machos fôramos.
Esta obra, tal qual um bom livro, faz-nos pensar. E trás nos à memória as conquistas das mulheres. Este ano o 25 de abril celebra o seu 50º aniversário e muito mudou neste meio século. Mas não podemos baixar os braços, quando ainda há tanto a fazer. Ao ler as Novas Cartas portuguesas, um pensamento veio-me à mente, que 50 anos se passaram e ainda morrem todos os anos mulheres às mãos dos seus companheiros, ainda recebemos menos 13.1% do que os homens e ainda se discute se o aborto é ou não um direito das milheres sobre os seus corpos.
Indiretamente, na América, como em tantos outros países, a lei protege uma estranha espécie de “pena de morte” aplicável às mulheres, ao lhe negarem o “controle” dos seus próprios corpos, conduzindo-as assim a abortos ilegais: “Calcula-se que morrem todos os anos por este motivo entre duas a cinco mil mulheres” na América.
Esta é uma obra que recomendo vivamente que leiam, quer mulheres como homens, não é um livro fácil, longe disso, mas acho que também não o tinha que ser. A Ana Luísa Amaral coordenou o lançamento de uma versão do livro em 2010 com anotações que ajudam a perceber melhor a linguagem e o simbolismo por detrás de cada carta. Podem encontra-lo aqui na Wook, Bertrand e Almedina.
Espero que esta review tenha despertado a tua vontade de ler esta obra marcante da literatura portuguesa e que, infelizmente, ainda não recebeu o valor que merece e gostava muito que deixassem mais sugestões de livros sobre o 25 de abril nos comentários.
Se a mulher se revolta contra o homem nada fica intacto.
A minha avaliação: 5